Há mais de meio século atrás, toda esta imensa região que compõe o Município de Tapauá, pertencia ao Município de Canutama. A cidade de Tapauá, hoje tão desenvolvida, era o local aonde pescadores, durante a safra de pesca nos lagos da redondeza, faziam suas feitorias. Saiba como viviam naquela época os seus pais, avós ou bisavós, lendo a seguir, o que Daniel Albuquerque escreveu em TAPAUÁ: PRIMEIRA GERAÇÃO. Você poderá, também, observar a fotografia de um navio “gaiola”, que constituía as embarcações de grande porte daquele tempo, que viajavam para os rios Purus, Acre e Iaco e passavam por esta região, onde paravam para receber lenha que era o combustível que alimentava as suas enormes caldeiras para produzir o vapor que impulsionava seus possantes motores. A firma aviadora J. A. Leite & Companhia Ltda possuía dois navios “gaiola”, o “Republicano” e o “Ayapuá”. Estes paravam nos seringais para vender mercadorias e receber produtos regionais. Observe mais, que pequenos números postados sobre o final das palavras chamam a atenção para explicações encontradas no final de cada capítulo, na seção que o autor conveniou denominar de CHAMADAS. Dê uma olhada. Vale a pena!
O INÍCIO
Ao alvorecer do ano de 1950, toda esta extensão territorial que compreende o Município de Tapauá pertencia ao Município de Canutama. O local onde hoje floresce e se desenvolve a sede municipal foi, originalmente, chamado de Boca do Ipixuna em razão da sua localização na confluência dos rios Ipixuna e Purus. Esta localidade, durante a época de pesca nos lagos da redondeza, era usada, nos lugares à beira rio, como feitoria para pescadores. Mas, por estar incluída no rol dos pouquíssimos lugares, dentre os localizados às margens do rio Purus não inundáveis durante a cheia dos rios, já despontava a sua virtual vocação desenvolvimentista.
A maioria das povoações situava-se na várzea local onde, espontaneamente, vicejava a seringueira forte hevea brasiliensis, cujo látex transformado em borracha ou in natura, constituía uma das principais atividades produtivas e fonte de renda do chamado fabrico de verão, realizado durante o baixar das águas do rio. Em razão das povoações serem anualmente inundadas, as moradias eram edificadas pelo modo das palafitas.
A economia da região era constituída pelo extrativismo vegetal ou animal, isto é, os habitantes da região trabalhavam cortando a seringueira, juntando e quebrando castanha, derrubando e rasquetando as árvores da sorva e da balata (extrativismo vegetal); pescando pirarucu, tambaqui, peixe boi e quelônios (também capturados nas praias), ou ainda, caçando para se alimentarem e venderem as peles, caititus, queixadas, veados e antas ou só para venderem as peles, que tinham grande valor comercial, onças, gatos maracajás, ariranhas, lontras e jacarés (extrativismo animal). Durante a cheia dos rios, os fregueses que não iam para as terras firmes, cortavam árvores na mata para servirem de lenha, combustível consumido pelos navios e lanchas equipados com máquinas a vapor, ou para vendê-las em toros.
A agricultura era representada por pequenos roçados de mandioca e feijão de praia plantados na várzea e destinados exclusivamente à subsistência. Havia, também, alguns plantios de mandioca em terra firme com razoável área cultivada, mas sem nenhum significado comercial relevante. A farinha de mandioca, que se constituía em alimento básico daquela época, era 70% (setenta por cento) importada de Manaus.
O sistema econômico por aqui desenvolvido era o do PATRÃO, também chamado de seringalista ou coronel1, isto é, o proprietário ou arrendatário de seringal, castanhal ou lago de pesca fornecia, nas quinzenas2, aos trabalhadores (chamados de freguês), as mercadorias necessárias para a subsistência e trabalho.
Como pagamento, os fregueses entregavam-lhe os gêneros por eles produzidos tais como borracha, látex, castanha, sorva, balata, pirarucu, tambaqui seco, couro de jacaré, mixira de peixe-boi e peles silvestres. Se tivesse instalado um porto de lenha na sua propriedade, receberia esse produto para vendê-lo aos navios e lanchas a vapor.
O movimento comercial entre patrão e fregueses era registrado em talonários de contas correntes, onde era debitada a mercadoria fornecida e creditada a entrega dos gêneros produzidos pela freguesia, demonstrando, também, o saldo devedor ou credor dos correntistas. Excetuando-se o pagamento do saldo credor dos trabalhadores rotineiramente efetuado após o término do fabrico de inverno3, não circulava dinheiro. De modo geral a operação de compra e venda realizada entre os fregueses era ultimada com o lançamento débito/crédito na conta corrente do patrão que, por sua vez, também era freguês de firmas aviadoras da praça de Manaus.
A maioria dessas empresas possuía embarcações que viajavam periodicamente ao rio Purus, fornecendo variada quantidade de mercadorias e recebendo os gêneros produzidos nas propriedades dos patrões. Entre outras, recordo-me ainda de J. A. Leite & Companhia Limitada, depois J. A. Leite (Aviamentos) Limitada e Barros, Filhos & Companhia Limitada que eram conhecidas como as principais firmas aviadoras daquela época.
Tal sistema econômico, em vigor naqueles tempos, deixaria perplexo qualquer recém-formado economista, pois funcionava corretamente fazendo girar, com bons resultados, a economia local. O chamado patrão era considerado, na prática, o pai de uma família numerosa (toda a sua freguesia), demonstrando especial interesse e ação em favor de toda a sua gente, em quaisquer atividades que se afigurassem necessárias: alimentação, saúde, moradia, material usado nas atividades extrativistas e transporte de pessoas ou reboque de canoas para as terras firmes onde eram executados os trabalhos de quebra da castanha, colheita da sorva e da balata a caça aos animais silvestres.
Como ponto negativo, se comparado à compreensão de hoje, poderemos citar a Educação que se resumia ao aprendizado na escola da vida, preparando, pela prática, os futuros seringueiros, castanheiros e pescadores que constituíam a essência do sistema econômico regional. Alguns filhos do patrão, mais liberais, ensinavam crianças e jovens a ler, escrever e contar. Mas era muito grande o número de analfabetos existentes por aqui naqueles tempos.
As ações de Saúde, que serão mais bem analisadas em outro capítulo, eram desenvolvidas à base do adágio popular de que “de médico e louco cada um de nós tem um pouco”.
Como já deve estar sendo vislumbrado pelo leitor, não existia por aqui nenhum técnico de saúde legalmente habilitado. Médicos e enfermeiros compunham a tripulação dos navios da linha, assim denominadas as embarcações da Companhia de Navegação do Rio Amazonas, na época, Serviços de Navegação da Amazônia e Administração do Porto do Pará – SNAPP, que resultou da encampação e fusão, pelo governo brasileiro, das companhias de capital estrangeiro The Amazon River Steam Navigation Company (1911) Ltd e Port of Para Co.
Mas o acesso a esses profissionais só era possível, e ainda com as devidas limitações, quando a embarcação parava em alguma localidade a fim de receber lenha para alimentar suas enormes caldeiras, produtoras do vapor que impulsionava seus possantes motores.
Os regatões, que negociavam de seringal em seringal, foram inicialmente os “médicos” da região, praticando um receituário empírico à base de pílulas cagativas (palavra inventada por mim, com o sentido de laxante), impondo aos doentes o respectivo resguardo a ser cumprido por período de dias múltiplos de sete: sete, quatorze, vinte e um e etc. Pior que os regatões, entanto, eram os ciganos (melhor dizendo, as ciganas), que passavam anualmente pela região viajando em barcos, tirando a sorte, lendo mãos e indicando como tratamento dos casos de doença, sempre transformados em feitiço, a renúncia e entrega aos algozes de todos os bens materiais do paciente, tais como, anéis, brincos, relógios, colares e dinheiro em espécie.
Infelizmente, graças à ignorância reinante na humildade da nossa gente, esses predadores da economia popular obtinham razoável sucesso, mesmo sendo tenazmente combatidos pelos padres, durante as desobrigas paroquiais, por mim e por outras poucas pessoas.
Pior que a Educação e a Saúde, por praticamente não existir, era a Previdência Social. Recordo-me, com tristeza, de pessoas idosas já sem condições de trabalhar, vivendo a expensas de filho casado (recebendo as broncas da nora), ou de filha casada, ouvindo o lamuriar do genro em razão do peso morto que tinha que sustentar. O constrangimento e o trauma sofridos por esses idosos eram tão profundos que certamente apressavam as suas viagens, sem volta, para o além túmulo.
Esta situação de penúria e perversa discriminação aos velhos (palavra usada, na época, com sentido pejorativo), só terminou após a criação, pelo governo federal, do FUNRURAL, precursor do programa social hoje existente, que devolveu ao idoso a sua personalidade, o gosto de viver e o respeito dos demais concidadãos.
Apesar de tudo isto, funcionava com tanta perfeição o sistema econômico aqui posto em prática (o qual, segundo narrativa de pessoas mais antigas, fora criado por gente nordestina que migrou para a Amazônia, fugindo das secas que assolavam o nordeste brasileiro), que havia até programação para o lazer e a desenvoltura social.
Tal programação era exercida, com sucesso, através de rezas em louvor a santos católicos: São Francisco, Santo Antônio, São Raimundo, São Benedito, Santa Luzia e Divino Espírito Santo, assim como, São Lázaro e Santo Soldado4 que não eram reconhecidos pela Igreja Católica Romana. A chamada reza era, na verdade, uma festa anual realizada por morador residente em colocação5 do seringal, no dia consagrado ao santo da sua devoção, com a participação dos demais membros da comunidade, que na época era chamada de seringal ou castanhal.
Nestas festas, além dos comes e bebes, havia danças, namoro entre jovens solteiros e adultos viúvos e muita alegria. Havia também os acertos de futuros casamentos que aconteceriam na passagem do padre da Paróquia de Canutama.
Estas mesmas virtudes (com exceção dos acertos de casamento) eram repetidas nas festas de aniversário ou matrimônio civil de pessoas famosas e endinheiradas ou que dispusessem de grande crédito e amizade com o patrão.
Comento, na única intenção de ser mais bem compreendido, que na época em apreço, a população desta região era constituída por 90% (noventa por cento), ou mais, de pessoas que professavam a religião católica. Assim, o pároco de Canutama (durante mais de vinte anos Frei Izidoro Irigoyen), visitava anualmente toda a região, na chamada desobriga paroquial6, rezando missas e novenas, batizando, crismando (com a devida autorização do bispo) e casando nossas moças casadoiras com os nossos jovens solteiros e, vez por outra, viúvas e viúvos. Por isto, a data da realização da maioria dos casamentos, era marcada para o dia da chegada do padre.
Faz-se necessário esclarecer que havia Juizados Distritais, com titulares nomeados pelo governador do Estado mediante indicação do Tribunal de Justiça (geralmente o patrão ou algum membro mais instruído de sua família), que celebravam o casamento civil. Podia-se encontrar juiz distrital nos seringais Tambaqui, Abufari, Itatuba, Jatuarana, Porto Arthur e Nova Olinda, com quem se casaram alguns católicos e evangélicos que residiam por aqui.
Entanto, segundo o entendimento geral da época, a forma de casamento preferida em razão da religiosidade das pessoas, era o matrimônio católico. Devendo ser considerado o filosofar de alguns jovens, afirmando terem preferência pelo sacramento não só pelas suas convicções religiosas, mas especialmente pelo fato de a noiva ter que se confessar antes da cerimônia, podendo revelar ao padre algum “pecado mortal” que o motivasse a aconselhá-la adiar o casamento, até que as coisas fossem devidamente esclarecidas ao noivo e seus familiares.
Havia, também, embora com menor frequência do que aconteceram nas décadas dos anos trinta e quarenta, as fugas noturnas as quais remediavam a situação amorosa de muitos casais apaixonados contra o gosto e/ou interesses dos pais.
Na maioria dos casos, as fugas tinham significado de gesto romântico, através das quais, para júbilo dos seus parceiros, as namoradas davam provas irrefutáveis de total confiança e de amor sincero e duradouro, visto que, a aventura não parecia fácil de ser realizada. De modo geral, o pai enfurecido, empunhando um rifle calibre 44 papo amarelo, saía em perseguição ao casal fugitivo, anunciando prematuramente a morte do ladrão e desonrador de sua filha querida.
Mas, pelo que ouvi dizer, aconteceram casos em que o furioso pai, após encontrar os fujões e considerar os fatos com calma, passou a residir com eles pelo resto da vida, legitimando a situação marital e expurgando o pecado, na passagem do padre em desobriga. Nestes casamentos a noiva era impedida de usar grinalda, símbolo da pureza e virgindade das donzelas.
Posso, todavia, afirmar com segurança, que os sentimentos de religiosidade, crença ou fé da gente daquela época, eram extremamente fortes, constituindo-se um dos principais fatores norteadores de suas vidas. Em quase totalidade das residências havia pequenos altares – repletos de imagens de santos católicos, moldadas de cera com o tamanho de 25 ou 30 centímetros e benzidas por padres durante as desobrigas paroquiais – diante dos quais se rezavam novenas ou ladainhas. Estas cantadas em curiosa imitação do latim (que era a língua oficial da Igreja Católica Romana) e dirigidas por pessoas idosas com a necessária experiência para estas práticas.
Fazia-se também muito comum, o pagamento de promessas em razão de graças alcançadas ou atendimento aos pedidos implorados pelas parturientes (na época, sem nenhuma assistência médica), que após o parto normal davam aos filhos o nome do santo protetor. Ainda vivem por aqui Benedito Ferreira de Andrade, Maria Soldada, Raimunda Soldado e algumas outras pessoas cujos nomes emanaram do pagamento de promessas aos santos milagrosos.
CHAMADAS:
Coronel – Segundo informações obtidas, em 1947, de um cidadão remanescente dos áureos tempos da borracha, desde o final do século XIX até o início da segunda década do século XX, quando foi extinta pelo presidente Hermes da Fonseca, a Guarda Nacional passou a criar cargos supranumerários com o barateamento das patentes de sua hierarquia militar.
Nesta mesma época, a borracha era exportada para os Estados Unidos da América e Europa por altos preços, transformando os seringalistas da Amazônia em novos ricos que, por vaidade, prestígio político ou interesse de gozar das regalias e imunidades inerentes ao cargo, compravam a muito cobiçada patente de coronel com a qual antecipavam o primeiro nome: Coronel Fulano de Tal.
Tal foi o número de coronéis existentes nos seringais amazônicos que a patente militar passou a ser sinônimo de seringalista. Para diferençar, ou por zombaria, os coronéis seringalistas passaram a ser chamados de coronel de barranco.
Quinzena – De duas em duas semanas, aos sábados ou domingos, o patrão atendia seus fregueses fornecendo mercadorias e recebendo os gêneros por eles produzidos. Em razão do comparecimento de toda a freguesia à quinzena, esse dia era também aproveitado para por as notícias em dia e as mulheres exporem os últimos requintes da moda e, às vezes, falarem e/ou ouvirem as bisbilhotices mais recentes.
Fabrico de Inverno – Realização dos trabalhos nos castanhais e outras localidades de terra firme, que aconteciam nos meses de fevereiro a junho de cada ano. Época do chamado inverno.
Santo Soldado – Contavam os mais antigos que, viajando em embarcação fluvial da linha, regressavam para Belém do Pará vários soldados que haviam participado da guerra do Acre. Um deles faleceu vindo a ser sepultado na localidade Boca do Jacaré, Município de Canutama hoje de Tapauá, onde a embarcação parou para receber lenha.
Algum tempo depois, surgiram notícias de que o soldado sepultado na Boca do Jacaré fazia milagres, atendendo aos mais diversos pedidos implorados por crescente legião de devotos. Foi tal a crendice popular ao novo santo, que foi erguida uma capela sobre a sua sepultura e o dia da sua morte e enterramento, 29 de junho, passou a ser festejado como o Dia de Santo Soldado.
Diziam, também, os mais antigos que, ante os rumores de santidade, os restos mortais do soldado foram trasladados para o Cemitério da Soledad em Belém do Pará, onde seu túmulo é visitado por muitos devotos.
Os padres da Paróquia de Santa Rita de Cássia de Tapauá, “ad supremam pacem domus” – para suprema paz da casa, não proíbem e nem desaconselham a devoção ao santo popular.
Colocação – Nome dado à localidade produtiva situada ao longo dos seringais ou castanhais.
Desobriga Paroquial – Era (ou é), uma bem organizada atividade religiosa da Igreja Católica. O pároco anunciava por escrito, com a devida antecedência, o dia da sua chegada a cada localidade, incumbindo ao patrão a obrigação de hospedá-lo e, no dia seguinte após o termino dos serviços religiosos, transportá-lo juntamente com o seu sacristão, para a próxima localidade a ser visitada.
A foto mostra um navio “gaiola”, já equipado com motores movidos a óleo diesel.
É muito parecido com os que naquele tempo – ainda impulsionados por máquinas a vapor – navegavam no caudaloso rio Purus.
Médicos e enfermeiros faziam parte da tripulação daquelas embarcações.